Conto | Hoje

Wesley Loebens
3 min readAug 21, 2020

--

Acordei, olhei pro relógio e vi que eu estava deitado no hoje. Abri a porta do quarto, cruzei a cozinha em direção ao banheiro. Meu rosto não tinha uma cor de saúde. Pálido como se não tivesse dormido a noite inteira, como se o vento da noite tivesse me coberto inteiro de uma casca fria, vermelha e com cheiro fúnebre.

Fiz minha barba em água corrente, e me olhei do espelho não como um homem que se perde em seu próprio reflexo, mas como alguém que não se reconhece na raça humana. Como se eu já tivesse visto esse corpo e essa cabeça pensante que agora me encara e não diz nada em frente ao espelho. Como se eu fosse o triplo dele.

Em poucos minutos, estava sentado à mesa bebendo o hoje. Nascido, torrado e virado pó, o hoje chegou a minha mesa anunciando novidade. Perfumou minha casa sem pedir licença. Eu bebi o hoje sem colocar açúcar. O gesto de bebê-lo não me trazia emoção nenhuma, nem tristeza nem felicidade; nem espanto nem anestesia; nada que viesse daquela xícara era capaz de provocar emoção alguma. Eu engolia o hoje como quem veste uma roupa em qualquer uma das quatro estações, apenas porque sabe que pelado não pode sair.

Era do hoje amargo que eu bebia e começava meu dia todos os dias, e nenhuma das vezes senti vontade de tomar outra xícara. Seria insuportável num espaço de tempo tão curto tomar duas doses de hoje, mesmo que depois de muitos hojes eu gostasse de olhar para trás e lembrar: olha, houve um dia em que eu venci.

Talvez você pense que eu não tenho mais nada a dizer e por esse motivo decidi me refugiar no abstrato para esconder de mim mesmo que não tenho nada a dizer. Mas estava acontecendo algo novo no meu dia, e o cheiro de hoje fresco me embriagava a tal ponto que eu não podia resistir. Me deu vontade de beber de novo. Não sei por que motivo, alguma animação fora de hora, não sei, algum frisson me atingiu de cheio e quis tomar duas vezes a mesma dose diária de hoje. Minha vaidade queria se encher do hoje em dobro.

Eu queria multiplicar um dia de minha vida, me tornar mais escasso, viver duas vezes aquela manhã. Eu queria entender por que o meu hoje era tão comum aos meus olhos, ao passo que amanhã ele já tinha outro gosto, muito melhor, muito pior, mas indiscutivelmente muito mais vivo que hoje. Mas agora ele tinha um frescor de novidade. Eu não suportava mais viver para produzir hojes insignificantes que só faziam sentido quando viravam lembrança. Era isso! Eu queria viver o dobro num dia, vencer o tempo, beber duas xícaras de hoje, ou seriam doses, não sei, eu pareço embriagado… era isso! Eu queria dois hojes num tempo só, porque eu não queria que a lembrança que esse dia irá provocar fosse melhor que o meu hoje em dobro e então eu queria bebê-lo de novo e não havia nada que me impedisse.

Eu estava há anos produzindo lembranças perfeitas que me puxavam pra baixo no vento da noite, enquanto eu dormia, enquanto eu estava acordado, enquanto viajava ou vivia um momento bom, qualquer que fosse o instante de minha vida atravessado por alguma lembrança de um hoje passado, colocava pra baixo meu hoje presente. Eu queria esquecer a festa de ontem, todas as coisas que disse, toda a cena que fiz, e para isso eu queria beber dois hojes na mesma manhã e enganar o tempo e a memória pelo menos uma vez. Essa era a minha chance. Para o meu dia começar bem eu precisava bebê-lo de novo. Eu precisava saber uma vez só como é estar por cima do tempo e rir daqui um mês ou daqui alguns anos não importa como chamamos o amanhã desse dia que de tão esgotado não me trará lembrança nenhuma: embriagado por esse frescor de vida, eu bebi o meu segundo hoje de uma vez só.

Acordei no susto. Eu estava no chão frio do meu quarto, o meu nariz sangrando. A cama e o travesseiro estavam sujos do café que me serviram na ressaca da noite de ontem.

--

--