Conto | Crime na padaria

Wesley Loebens
6 min readMay 27, 2021

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“Há vagas”, diz a placa na parede da fábrica de sapatos. Na calçada, contou pelo menos vinte pessoas numa fila, formada rente ao muro da empresa, todos esperando para entregar o currículo. Havia muito as empresas estavam evoluindo, usavam a internet para recrutar novos funcionários, observar seus comportamentos nas redes sociais, até mesmo ignorar os candidatos não selecionados se tornava tarefa fácil com a barreira da internet. Mas na pequena cidade de Rio Longe, no interior do Rio Grande do Sul, as coisas ainda não tinham mudado assim.

A manhã de segunda-feira estava ensolarada mas fazia o frio típico da região, comum para o início do inverno. Jeff estava há alguns meses de volta à cidade em que nasceu. Depois de um hiato de seis anos vivendo em Porto Alegre, com visitas pontuais à família que ali ficou, retornou a Rio Longe com diploma de publicitário. Estava saindo para mais uma caminhada matinal antes do trabalho.

Esta cidade é um buraco, pensava enquanto apressava o passo para se livrar dos olhares dos homens e mulheres que estavam na fila. Estava certo, ali era realmente um buraco. A cidade parecia ter sido construída sobre um pântano. Não havia horizonte para perder de vista. As ruas, as casas, os bairros, as plantações, tudo ficava entre altas paredes montanhosas que, apesar de muito bonitas, aumentavam ainda mais a sensação de isolamento.

Era nítido como estranhavam aquele garoto de mullet e headphones andando apressado na rua àquelas horas. Devia ter entregado algo no olhar ou talvez na pressa ou no jeito de andar a impressão de descompromisso de seu itinerário. Já tinha passado das sete da manhã e, como era costume numa cidade industrial, depois daquele horário ninguém mais andava na rua: os prédios das fábricas de sapato engoliam a maioria esmagadora dos habitantes.

Em dez minutos Jeff já estava no centro. O centro é uma única rua comercial onde ficam lancherias, lojas, a prefeitura e um dos poucos prédios com mais de cinco andares do município. No Instagram de Jeff havia uma foto desse prédio, tirada com o celular num dia nublado em 2013, a luz difusa contrastando com a arquitetura que lembra os prédios de Blumenau e Gramado. Aparentemente indiferente àquele lugar que há muito não aspirava novidade alguma, Jeff seguia caminhando, fixo no seu pensamento, cantando baixo a música que tocava alto dentro de sua cabeça. Estava protegido por essa redoma de indiferença que o impedia de fazer parte da cidade.

Foi interrompido algumas vezes pelo “bom dia” de algumas velhas e velhos simpáticos que as coincidências do tempo e do espaço colocaram ali. Dobrando a esquina, uma rajada de vento forte e frio acabou por tirar o fone do ouvido, que ficou no pescoço, suspenso. Sim, era o cheiro da Padaria Graeff, era aquele cheiro de salgado folhado da Padaria Graeff que o vento trazia junto. As orelhas de Jeff, que há segundos atrás estavam protegidas pela redoma, começaram a esfriar com o vento frio. O nariz estava igualmente gelado e vermelho e, agora, seduzido pelo cheiro do gosto daquele salgado. A boca parecia uma nascente de água potável vertendo, vertendo.

As mãos tocaram os bolsos e não havia dinheiro na calça. Saía toda manhã para caminhar antes do trabalho mas nunca para fazer compras, não carregava dinheiro. Naquela hora estava decidido: queria entrar na padaria e relembrar os tempos de escola quando juntava moedas e trocados para tomar cappuccino e comer um salgado antes da aula. Eram tão raros aqueles momentos— afinal não era sempre que ganhava dinheiro — e tão ricas as lembranças que estava tendo agora, de súbito, que entendeu merecer este auto-presente.

Lembrou que no celular, atrás da capinha, dentro do plástico da carteira de identidade guardava um cartão de crédito. Por um tempo ficou sentado próximo à padaria imaginando o vexame que seria se a loja não aceitasse cartões de crédito. Será que não era exagero? Enquanto a cidade trabalhava, iria mesmo comer salgado folhado? Havia tantas coisas na sua cabeça, uma crise mundial de saúde pública, desemprego, o país no mapa da fome, a violência… aquelas eram notícias diárias que criavam uma ambiência não exatamente de culpa mas de impotência, aflição. Uma bruta aflição, achatamento, algo muito particular e íntimo fazia todo prazer parecer desonesto enquanto muita gente morria para uma doença nova, sem cura ou vacina, sem chances.

Era como estar de férias na praia em uma quarta-feira de sol, pensava. O simples gesto de comprar um salgado, gastar dez reais numa padaria pela manhã, era uma trapaça. Não se sentia digno de viver aquela felicidade que agora se mostrava egoísta de colocar o salgado na boca e fechar os olhos feito criança e mastigar como se a boca e a língua provassem não o gosto de massa nem de salsicha nem de queijo mas de um orgasmo clandestino e inapropriado que excedia o paladar. Havia uma culpa íntima que denunciava qualquer tentativa de trapacear a aflição, que era a regra. Todos deveriam viver a aflição.

Mas o que era isso, algum distúrbio? Seria algum trauma? O que de súbito transformou o ato de comer o salgado num privilégio visceral e criminoso, digno de algo que deveria ser feito às escondidas? E não seria esse ato por si só dotado de privacidade? Bastaria comer de boca fechada que ninguém a não ser as paredes da própria boca seriam testemunha do tal prazer indevido. E se dessem com a língua nos dentes? Estaria cometendo algum pecado? Gula? Não, não acreditava naquelas coisas. Comer aquele salgado era uma ambição cada vez mais real e incontrolável.

Enquanto estava sentado no banco, o vento continuava batendo, velhos e velhas continuavam a desejar “bom dia” simpaticamente, a cabeça de Jeff fervilhava feito sonrisal e o cheiro de salgado folhado parecia fazer um convite secreto a um crime. Um cachorro marrom levantou a pata para mijar, deu alguns passos e parou de frente ao banco em que estava sentado. Seus olhos famintos de cachorro de rua ludibriavam Jeff, atônito, que chegou a crer que o cão decifrava por inteiro suas intenções ocultas.

Jeff sabia que dez reais gastos numa padaria em uma segunda-feira não traria uma vacina, nem mataria a fome de um país, e não faria muita diferença na família de um daqueles vinte desempregados da fila. Por um momento, ficou indignado. Agora, se pudesse, gastaria o dobro, gastaria cinquenta reais em salgados folhados, comeria até encher a barriga e o resto daria ao cachorro marrom, testemunha ocular daquilo tudo.

Começou a caminhar, os passos ligeiros, como se estivesse querendo se livrar da própria cabeça, os cabelos balançando no vento. Se pudesse, entregaria ao vento toda a sua aflição, faria sacrifícios, estava disposto a se vingar. Estava há meses anestesiado, não era a primeira vez que entrava em conflito por estar vivo e buscando prazer. Que o vento levasse tudo embora. Sentiu uma vontade débil de rir, o vento parecia contar piadas no seu ouvido. Estava sério, contido, mas por dentro dava altas gargalhadas, de boca fechada, que viravam pequenos grunhidos de som, como se fosse um espirro discreto.

Entrou na padaria. Estava tudo em silêncio, não havia outros clientes, nenhuma testemunha. Dirigiu-se ao balcão e pediu um salgado, um apenas, e uma xícara de cappuccino. Pagou com o cartão de crédito. Sentou-se a mesa e ficou esperando a atendente trazer o pedido. De vez em quando olhava para os lados, um pouco para a vitrine de bolos, outro para a seção de frios, olhava também para trás, para a porta. Não imaginava, mas qualquer pessoa que entrasse naquele lugar perceberia sua aflição e impaciência.

O pedido chegou até Jeff. A atendente desejou bom apetite mas ele, distraído, nem pôde ouvir. Com fone de ouvido na cabeça e, antes que o salgado começasse a esfriar, abriu a boca e deu uma bocada, de olhos fechados, uma bocada tão grande que transparecia estar faminto há dias. Realmente, era de uma crocância e maciez únicas aquele salgado de salsicha e queijo. Nem em Porto Alegre encontrara um salgado tão bom como ali em Rio Longe. Ele mastigava e sentia o salgado dançando na boca, era um prazer íntimo inigualável, intransferível.

Devia estar fazendo algum barulho ao comer, algum som de prazer, hummmm, algo do tipo, mas não dava-se conta, o fone de ouvido exigia atenção sonora exclusiva. A moça do caixa, que estava parada há pouco tempo o observando, curiosa, resolveu conversar com o garoto estranho, ao que ele, de praxe, não respondeu porque nem a ouviu. Como se tomasse ar para dar um grito, chamou atenção de Jeff com um aceno e perguntou, apressadamente:

Ô-uh, tá tudo bem?

Tá uma delícia.

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