Conto | A coceira
Meu corpo entregou-se para mim como se aquela fosse a última coceira do mundo. Meus dedos começaram a ter vida própria. Em cada ponta de dedo, um cérebro-comandante e desesperado ditava ordens contra minha vida.
Embaixo de minhas unhas havia um borrão de sangue, pele e sujeira que se dissolvia, no atrito mecânico, em uma coisa só, cor de sangue e compulsão. Eu curvava-me para trás, de dedos e dentes abertos para o último gozo. A água no chão, grená, prateada, reluzente, sumia no ralo. Até o vapor do chuveiro mudou de cor neste ritual. Refletia o vermelho-vida nos azulejos antigos daquele banheiro.
Os Dedos me rasgavam inteiro, de cima a baixo, de um lado para o outro e nas diagonais, feito rabisco de criança. Meu corpo não tinha limite nem margem, eu cavava cada vez mais fundo para dentro de mim. A dor virava sorriso em minha boca. Chegou ao ponto em que toda a minha cor me deixou: fiquei eu, deitado sob o chuveiro ligado, roxo e sozinho.
A televisão no cômodo ao lado denunciava presença de vida, inocente e programada. Algo fora de mim insistiu por aquela vida ordinária. Permaneci deitado, consciente e imóvel por três longas horas. Assistia a televisão com os ouvidos grudados no chão do banheiro. Quando voltei pra mim mesmo estava tudo branco, quente, úmido e barulhento. Levantei do chão, precisava checar meu e-mail.